Exigência ou transigência?

1. Ninguém parece já ter dúvidas de que a manutenção do regime transitório do decreto 73/73 é uma aberração, que ofende, antes de mais, o direito de todos os cidadãos à qualidade arquitectónica. A própria Assembleia da República assim o declarou, ao aprovar por unanimidade, há um ano, a Resolução n.º 52/2003, na sequência da petição “Direito à Arquitectura”, lançada pela Ordem dos Arquitectos e subscrita por 55 mil cidadãos. Nela recomendou ao Governo que procedesse à revogação do Decreto n.º 73/73, considerando “urgente um novo regime de qualificação profissional no domínio da construção, para a regulação de um sector de actividade de importância vital para o País”. Na mesma resolução se diz ainda que “não havendo direitos adquiridos nem expectativas legítimas a proteger, deverá, no entanto, ser definido um período razoável de transição, para reencaminhamento dos profissionais reconhecidos pelo Decreto n.º 73/73, de 28 de Fevereiro”.
Se tudo isto obteve a unanimidade do Parlamento, por que razão é que o famigerado decreto não foi já revogado? De que se está à espera? Ao que parece, e segundo o próprio Ministro esclareceu no nosso Congresso, “o assunto está em cima da mesa”. Mas há posições e interesses divergentes que é necessário arbitrar.

2. A moção de orientação global aprovada no Congresso de Guimarães explicitava claramente o que os arquitectos esperam do novo diploma que deverá regular a qualificação profissional exigível aos autores do projecto:
que garanta um prazo de transição razoável, nunca superior ao máximo de 5 anos, que é o tempo necessário para obter um diploma em arquitectura;
que garanta o acesso do arquitecto a todas as fases do processo de edificação, incluindo a direcção de obra;
que preveja a regulação pelas ordens e associações profissionais e pelo Estado do efectivo cumprimento do papel dos diferentes agentes do processo de edificação;
que, complementarmente, institua medidas de apoio efectivo à reconversão profissional dos agentes não habilitados a elaborar e subscrever projectos de arquitectura.
Com base nestes pressupostos, foi o CDN mandatado para intervir junto do Governo, da Assembleia da República e dos parceiros profissionais para garantir a rápida promulgação do novo diploma.

3. Foi nesse espírito que desenvolvemos conversações com a Ordem dos Engenheiros, a Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas e a Associação Nacional dos Engenheiros Técnicos, a fim de procurar a maior convergência possível com o articulado do diploma que deverá reger as novas fronteiras entre todos estes profissionais. Há dois pontos dos quais nunca prescindimos: que a regulação da qualificação profissional seja feita numa perspectiva de qualidade e exigência para todo o processo construtivo, de que somos todos parte; e que cada profissão se exerça no seu domínio próprio, cabendo aos arquitectos, como é óbvio, o domínio da arquitectura. Parecem princípios simples, relativamente consensuais, que deveriam ter o acordo de todos. Acontece que assim não é. A vigência, durante mais de 30 anos, de uma total desregulação criou hábitos e distorções de mercado às quais é necessário fazer frente. E é isso que tem de ser exigido do poder legislativo: capacidade de enfrentar a disparidade de interesses, procurando o bem comum.
Ora, qual é, nesta matéria, o bem comum? A nosso ver, a defesa da qualidade arquitectónica, incumbência que aliás a própria Constituição da República comete ao Estado e às autarquias. Como fazê-lo sem os arquitectos ou contra eles?

4. As conversações com a Ordem dos Engenheiros, iniciadas sob a égide do Eng.º Sousa Soares, foram retomadas após a eleição do actual Bastonário, Eng.º Fernando Santo. Já tínhamos adquirido um patamar de grande consenso na necessidade de separa águas, de devolver a arquitectura aos arquitectos e de manter níveis elevados de exigência profissional. A entrevista publicada neste número do JA expressa bem a perspectiva que neste momento é proposta pelo actual Bastonário, mais ambiciosa que a do anteprojecto governamental de 2002. Ou seja: não devemos tratar apenas da elaboração dos projectos, mas sim analisar a responsabilidade profissional ao longo de todo o processo que vai do projecto à execução.
A Ordem dos Arquitectos, por meu intermédio, disponibilizou-se para fazer esta reflexão, a começar pelo âmbito do próprio diploma. Não podemos ignorar todas as reformas legislativas realizadas nos últimos anos em matéria de licenciamento de obras de edificação e urbanização. Existem hoje, no nosso ordenamento jurídico, dois regimes distintos: um, o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, consubstanciado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 177/2001, de 4 de Junho, que reúne num só diploma regimes que anteriormente estavam separados (obras particulares e loteamentos); o outro, o Regime Jurídico dos Instrumentos de Ordenamento Territorial, que foi regulado pelo Decreto-Lei n.º 389/99, de 22 de Setembro, na sequência da Lei de Bases do Ordenamento do Território e do Urbanismo (Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto). O âmbito do novo regime de qualificação profissional deve ser o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação. O regime de qualificação profissional na área dos instrumentos de gestão territorial, actualmente regulado pelo Decreto-Lei n.º 292/95, de 14 de Novembro, deverá ser revisto e actualizado em diploma distinto, já que envolve outros profissionais, outras escalas de intervenção e outras responsabilidades.
Também chegámos à conclusão que a graduação de responsabilidades de acordo com o nível de qualificação se devia enquadrar no contexto dos níveis profissionais já definidos no quadro comunitário. Assim, de acordo com a Decisão do Conselho 85/368/CEE, de 16 de Julho de 1985, que estabelece as correspondências de qualificações de formação profissional entre Estados-membros, estão definidos cinco níveis de formação. Ao nível 1 corresponde a escolaridade obrigatória e iniciação profissional; o nível 2 já exige formação profissional; o nível 3 implica formação profissional e formação técnica complementar, ou formação técnica, escolar ou outra, de nível secundário; o nível 4 exige formação secundária, geral ou profissional e formação técnica pós-secundária; e o nível 5 exige formação secundária (geral ou profissional) e formação superior completa. A mesma Decisão prevê que a formação do nível 4 permite “assumir responsabilidades de concepção e/ou direcção e/ou gestão” enquanto o nível 5 é exigível nas actividades profissionais que impliquem “o domínio dos fundamentos científicos da profissão”.
Este enquadramento geral pode ser da maior utilidade para o caso que nos interessa. A concepção de projectos só deve ser permitida aos níveis 4 e 5, ficando assim de fora deste âmbito os profissionais de nível 3, a que correspondem actualmente, por exemplo, os chamados “agentes técnicos de arquitectura e engenharia”, bem como outros profissionais intermédios do sector da construção civil cuja formação já está regulada em Portugal (ver Portaria n.º 466/2003, de 6 de Junho, que define a formação necessária para técnico de obra, técnico de topografia, técnico de medições e orçamentos e técnico de desenho de construção civil). Mas há que definir cuidadosamente a fronteira entre os níveis 4 e 5.
Um outro problema reside na possibilidade de articular o novo diploma com o diploma recente que regula as classes de alvarás (Decreto-Lei n.º 12/2004, de 9 de Janeiro). Nos termos deste diploma e legislação complementar, são estabelecidas 9 classes de alvarás (Portaria n.º 17/2004, de 10 de Janeiro), sendo a classe 1 para obras de menos de 140 mil euros e a classe 9 para mais de 140 milhões. Acaba assim a distinção entre empreiteiros de obras públicas e industriais de construção civil, pois o título habilitaste passa a ser único, em função da capacidade técnica requerida de acordo com o valor das obras envolvido. A Portaria n.º 16/2004, de 10 de Janeiro, determina que é sempre obrigatória a presença de, pelo menos, um técnico de nível 4 (engenheiro técnico) em todas as classes de alvarás; a partir da classe 6 (a que correspondem obras entre 2.240.000 e 4.480.000 euros) é sempre exigida a presença de, pelo menos, um técnico de nível 5 (engenheiro). Fazemos notar que esta Portaria omite, como técnicos de nível 5 habilitados, os arquitectos. É uma omissão que reputamos gravosa e contra a qual nos devemos insurgir.

5.  Neste quadro, pensamos haver margem para levar mais longe as negociações inter-profissionais, abrangendo todas as profissões de nível 5 (arquitectos, arquitectos paisagistas e engenheiros) e também, se possível, as de nível 4 (engenheiros técnicos). Devemos nestas negociações procurar um consenso alargado, mas sem esquecer que a função de arbitragem final cabe ao poder legislativo e não às associações profissionais  envolvidas. E não devemos perder de vista a reserva de função dos actos próprios do arquitecto estabelecida no art.º 42.º do nosso Estatuto. Em suma, a nossa posição deve ser de exigência e não de transigência.
A morte anunciada do Decreto 73/73 ganhará em ser proposta por uma larga frente de profissionais envolvidos  no sector da construção, nossos parceiros. Entendemos que é, nesta perspectiva, colaborativa e não corporativa, que o processo deve ser levado ao seu termo. Mas não aceitaremos que o poder político se demita das suas responsabilidades. Em última análise, será ao Governo e à Assembleia da República que teremos de pedir contas se não se puser termo a uma situação legal obsoleta, lesiva dos direitos dos profissionais e dos cidadãos, e que muito tem contribuído para fazer das nossas cidades e periferias vastos panoramas de má construção, degradação da paisagem e deficiente qualidade urbana. Essa é, para nós, em última análise, a razão do nosso combate: o Direito à Arquitectura, entendido como direito de todos os cidadãos à qualidade arquitectónica no seu quadro de vida.

Helena Roseta
Presidente da Ordem dos Arquitectos (mandatos 2002-2004 e 2005-2007)
in JA, n.º 215, Abril, Maio, Junho 2004, pp. 20-22.

Screen Shot 2015-03-02 at 11.20.01

Leave a comment